domingo, 13 de maio de 2012


Felipa


.
.
"FELIPA"

.
por Rubens Antonio
.
Salvador – Bahia
2012
.
Peça registrada no
Escritório de Direitos Autorais
da
Fundação Biblioteca Nacional
.

Agradecimentos


A Perry Salles, o qual, após conversa sobre a História da Bahia, sugeriu que eu escrevesse uma peça tendo por tema Felipa de Souza.

A Christina Magalhães Herrmann, a qual, através da sensibilidade das suas músicas, ofereceu guia fundamental para a concepção de momentos essenciais desta peça, disponibilizando aquelas duas que mais influenciaram para utilização na mesma.




De onde vem esta minha melancolia?
Sim... Esta profunda tristeza que me abraça... e me envolve... e me chama “Querer”...
Talvez bastante deste olhar e me sentir desimportante o suficiente para que quem me permeie tão densamente não me tome pelo que sou... e sim, num átimo, como uma sombra fugidia imersa no descuidado...
E uma desatenção que eu não imaginara merecer... que eu não esperara... me envolve como manto sombrio e fiel...
E eu recolho de sobre mesa e cama minhas alegrias, minhas cores, minhas expectativas... as Verdades sem fim...
E me calo... em meus medos e dores...
E me deito com a Solidão... Amada dileta... nesta noite sem ritual... pendurada... agora... no oco de mim...

Felipa de Souza – Carta do Exílio



...e em julho do ano do Senhor de hum mil quinhentos e noventa e um, na Cidade do Salvador, viviam livres oitocentos moradores brancos e dois mil e quatrocentos mestiços de brancos com índias...
Negros da terra há... Quantos não sei...
Todos foram agitados pela visita de Heitor Furtado de Mendonça, inquisidor do Santo Ofício.
Convocados a confessar, a delatar heresias, cento e treze pessoas falaram...
Novecentas e cinqüenta denúncias foram efetuadas.
Quatro delas apontavam para uma portuguesa de trinta e quatro anos, educada nas letras, casada... Felipa de Souza...

Canto 1



FELIPA CANTA E CANTAROLA, CUIDANDO DAS SUAS PLANTAS.
DÁ UM SORRISO, OLHANDO O PARA A LUA

Ó... Luz extensa
De molde infinito
Seu mole re-tensa
Sugando-me o grito

Solidão passageira
Infinda amplidão
Sucumbem-me as Vidas
Forjando... paixão

Reflete-Te Nua
Esta flor que se espraia
Reinventa Teu mito...
E meu fogo desata...
Em dor... no Teu rito

MERCEDES ADENTRA A CENA. APONTA A LUA. FELIPA NÃO A VÊ.
Ah... Saúda a Lua...
Calada e sorrindo
Gritando a coisa!
Grita à coisa!
Grita a coisa que grita!
Grita à coisa eterna e infinita!
Grita a coisa que grita!

FELIPA SORRINDO
Grita!
Grita a eterna e a aflita!
Grita a terna e a bendita!
Grita a tenra e a maldita!
Grita a coisa! Grita a causa! Grita a pausa!
Grita a coisa! Canta! Agita! Para! Medita!
Grita! Grita a coisa que grita!

MERCEDES
Grita a bela e a proscrita!
Grita a nódoa! Grita a escrita!
Grita a Vida! Acredita!
Grita! Eleva! Enfia! Devora! Rebola!
Grita a coisa! Suga! re-Mete! Possui com maestria!
Grita! Mama! Toma! Chama! Cama! Ama!
Grita... Grita a coisa que grita!

FELIPA
Grita... Amor... Amor grita...

MERCEDES
Grita... Amor... Amor grita...

MERCEDES VAI ATÉ FELIPA, ABRAÇA-A POR TRÁS, BEIJANDO-LHE A FACE. FELIPA SORRINDO

Flui Rio... Flui Mundo... Flui Vida...
Flui... Flui... Flui sabor... Flui ferida
Flui Alma... Flui... Flui mente
Flui a Eternidade na gente...

Vai brisa... vai vento...
Vai ponte... farol... me traz alento
Vai... Revolve noite... Percorre dia...
Vai... Acorrenta e brinda... Suave magia


Fui Rio... Fui Mundo... Fui Vida...
Fui... Fui... Fui sabor... Fui ferida
Fui Alma... Fui... Fui mente
Fui a eternidade na gente...

Ai.. brisa... Ai... vento...
Ai... ponte... farol... alento...
Ai... noite... Ai...  dia...
Ai...  corrente... Ai... brinde... Ai... magia...

MERCEDES AFASTA-SE. DECLAMA
Ah ... Poetisa... Poetisa...
Olhando-A de lado... serena... e sozinha
O papel que repousa... Sua alma caminha
Num momento unindo... Sua Lua e a minha
Sua dor... minha dor... A Vida... uma linha

Não vê meu olhar... e eu não apareço
Não sente minhas mãos... a flor que ofereço
Uns brilhos... Seus olhos... e eu estremeço
Mais lágrimas... uma dor... um novo começo...

Sorrindo... tão triste... Sua boca se agita...
Um pouco... um instante... Sua face me fita...
Esta luz... Sua mágoa... Seu corpo se irrita...
Porque tanto ferem... a Sua alma que grita...

A pena... parada... gemendo num canto...
Murmura a charada... da treva um recanto

Ao longe o Sol... que se põe com encanto
E toca Seus olhos... velando Seu pranto

Chora poetisa... chora... maninha
Mas chora tranqüila... e nunca definha
Porque essa dor... que é a Sua... também é a minha
Pois... chora... chora... chora sim... chora assim
Quem... não chora sozinha...

MERCEDES, APROXIMA-SE, COLOCANDO UMA DAS MÃOS, BEM SUAVEMENTE, SOBRE UM OMBRO DE FELIPA
Percebo-a... Felipa... como brisa

FELIPA, LEVANTANDO-SE
Vem e me banha...

MERCEDES
Vou... Guia-me ao infinito,

FELIPA
Cálice impuro... bendito.

MERCEDES
Escreve, Amiga...
Cartas ao amanhã,

FELIPA
Rezas de alma pagã.

MERCEDES
Ancora, Amiga...
Nós duas... um só pó.

FELIPA
E remete dentro de mim,
Esta busca sem fim...

MERCEDES
Sussurra, Amiga...
Encanto... que em mim floresceu

FELIPA
Seu coração sincopado.

MERCEDES
Grita, Amiga
Minha querida... Minha Paixão...
Tuas frases de dor...

FELIPA
Amanhecer
Conto. Pena.
Fulcro de Amor.

FELIPA
Tanto espinho em flor.

MERCEDES
Funde, Amiga...
Lágrimas azul-céu
Esta tirania do passar.

FELIPA
Tua voz mansa a rasgar.

MERCEDES
Aperta, Amiga...
minha Alma junto à Tua
Nosso Amor num momento

FELIPA
Minha anti-vestal nua.

MERCEDES
Uiva, Amiga...
Dor surda e acuada.
Meu sonho, minha raiz...
Minha dor de ser feliz.

FELIPA
E... Dorme, Amiga...
Sua profunda tristeza terna...
Embalagem de terra eterna.

MERCEDES
Ama, Amiga...
Minha querida adorada,

FELIPA
Minha sensatez não acuada.
Nós duas... Uma só

MERCEDES
Descansemos, Amiga...
Destas redundâncias...

FELIPA
Deste por um triz

MERCEDES
Deste encontrar e perder

FELIPA
Deste sorriso tão infeliz...

MERCEDES
Suspiro... Encontro... Calor...

FELIPA
Páginas suaves... do nosso Amor...

AMBAS SAEM


Canto 2



FELIPA CHEGA À JANELA, OLHANDO O LUAR

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Na pele ressoa... no beijo ternura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Na carne esquenta... na alma perdura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Embrenhar-me... encontrar-me.. em fenda escura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Calor que abriga... minha carne dura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura!

FELIPA
O passado evoca... À nossa dor cura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Dançar... beber... sublime natura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Sugarmos... lambermos... vivermos fartura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Almas e corpos... deliciosa tortura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Mergulhar na paixão... estrada segura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Explodirmos... gozarmos... vivermos tontura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Teu cheiro... meu cheiro... enorme doçura...

CORO GRITANDO
Loucura! Loucura! Loucura!

FELIPA
Teu eu... meu eu... tensão e procura...

CORO GRITANDO
Loucura... Loucura... Loucura...

FELIPA
Carinho... tesão... excelsa ventura...

O CORO PERMANECE EM SILÊNCIO. FELIPA ESPERA UM POUCO.

FELIPA
Calaram-se?

CORO FALANDO
Não! Loucura? Loucura? Loucura?
Sentimos... Sabemos... Tão bela candura...

FELIPA
Sussurra... Sussurra... Sussurra...

CORO SUSSURRANDO
Loucura... Loucura... Loucura...

FELIPA
A chuva... A paz... As cortinas...
Sangria... Palmito... Azeitona...
Morango... Taças... Sangue...
Altar... templo... do meu gozo...

CORO SUSSURRANDO
Loucura? Loucura? Loucura?
Murmura... Murmura... Murmura...

FELIPA
Senda madura...

CORO SUSSURRANDO
Sussurra... Sussurra... Sussurra...


Canto 3


FELIPA BAILANDO SOZINHA
Dança!
Dança à Reza Forte! Dança!
Dança à Noite Densa!
Dança e Uiva!
Grito e corte

Dança!
Assim... Girando...
Dança! Dança!
Não se importe...

Dança!
Dança à Lua Negra!
Dança á Treva!
Dança à sorte!


Dança!
Dança assim primeiro!
Dança o rito!
À Luz entorte!
Dança por inteiro!
Dança Louca!
Dança ao Sul!..
Dança ao Norte!..
Dança para a Mãe!
Dança! Dança!
Dança à Vida!
Dança à Morte!

JESUÍTA CHEGA E FICA DE LADO, CONTEMPLANDO FELIPA. ELE FALA, ELA RESPONDE, COMO SE FALASSE À LUA
Solidão...

FELIPA
Estava na rua.

JESUÍTA
Ecoa a cantiga


FELIPA
Estava na Lua.

JESUÍTA
A memória antiga,

FELIPA
Estava na Tua.

JESUÍTA
Na dor que fustiga.

FELIPA
Derrama a lava,

JESUÍTA
Flor que reduz

FELIPA
Treva que entrava.

JESUÍTA
Meu coração... expus....

FELIPA
O sagrado clama

JESUÍTA
Coração... Desculpe os rombos

FELIPA
O que vem das chamas.

JESUÍTA
Coração... Perdoe os tombos.

FELIPA
Coração... Psiu... Paciência...

JESUÍTA
Aguarda ela voltar

FELIPA
Psiu... Resistência...

JESUÍTA
Meu coração... Perdoa.

FELIPA
Mas tem que esperar.

JESUÍTA
Coração tonto... amigo,

FELIPA
Esquece o perigo,

JESUÍTA
Dorme em meu peito.

FELIPA
Esquece a dor,

JESUÍTA
Temor que atravessa.

FELIPA
Coração... Sorriso e taça

JESUÍTA
O Amor não passa.

FELIPA
Coração, não veja ameaça.

JESUÍTA
Ah! Coração... meu segredo.

FELIPA
A Ti peço, aqui num canto,

JESUÍTA
Sorria cego pro medo.

FELIPA
Esquece o provável pranto

JESUÍTA
Porque tão só me encontrei
A Ti procurei... e não achei

FELIPA
Porque... sem rumo
de Ti não sei.

JESUÍTA
Eu, que estava na rua,
Eu, que estava na Tua,

FELIPA
Eu, que estava na Lua.
Dorme em mim... coração.

ELE CAMINHA ATÉ DIANTE DELA, QUE O PERCEBE

FELIPA
Ela vem a tecer... tece.. tece...

JESUÍTA
Que oração estranha é essa?

FELIPA
Preciso convidar o prezado Jesuíta à dança?  Às sandálias do seu coração...

JESUÍTA
É preciso cuidados... Nem todos que navegam para o oeste chegam às Índias.

FELIPA
Muitos descobrem terras... Outros morrem... Delicia o viajar... “Navegar é preciso...”

JESUÍTA (sem esperá-la acabar)
“Viver é impreciso.”

FELIPA (após uma pausa, sorrindo)
“Navegar é preciso... Viver não necessário...”

JESUÍTA
Ei! Fala-se de precisão!

FELIPA
Fala-se de Viver...

JESUÍTA
Pede um pouco de Razão. É disto que falo!

FELIPA
Segurança... Cortes... Cúrias... É disto que fala?

JESUÍTA
Seja! Por que não?

FELIPA
O que sobrevive em mim sem meus sonhos?

JESUÍTA
“Queres aprender a orar, faça-Te ao mar.”

FELIPA
Queres aprender a orar? Seja o Mar...

JESUÍTA
Não teme os abismos?

FELIPA
Sou meus abismos... e... minhas montanhas.

JESUÍTA
São antitéticos.

FELIPA
Sou incoerente.

JESUÍTA
Não a aflige?

FELIPA
Dá-me prazer...

JESUÍTA
Ah! Felipa... Quem dobrou o Cabo das Tormentas... foi por ele devorado.

FELIPA
Que delícia... Quem teve maior prazer? O Devorador ou o Devorado? Quem foi descoberto?

JESUÍTA SORRI
Ah... Felipa... Tenha ciência das suas beiras...

FELIPA
Que limites são esses do infinito que não os que pensamos ver? Tem suas bordas? Bordas infinitas de infinitos infinitos em contatos infinitos com outros infinitos... como as vagas nos oceanos...

JESUÍTA SORRINDO
Para! Não me confundas. A pluralidade dos mundos não é piedoso imaginar... É iníquo o instável...

FELIPA
Sim... Deixai a nós... mulheres... esta multiplicidade... Não somos, nós, as inconstantes?

JESUÍTA
Multiplicidade é nossa... não d’Ele...

FELIPA
Bom Jesuíta... Percebe este calor de Vida em torno de nós?

JESUÍTA SORRINDO ABUNDANTEMENTE
Como conhecê-la sem apaixonar-se? Por meus votos... Tua fala aprimora perigos... embriaga...

FELIPA DÁ COM OS OMBROS AFASTANDO-SE
Canto cá eu, em meu canto, no meu canto que canto.

JESUÍTA OLHANDO PARA FELIPA, FALANDO, SEM QUE ELA OUÇA
Passo a passo... canto em mim...
Pureza d´Alma... Amor sem fim...

Sorrio e deliro... sigo... o vento vem...
Meu coração por Ti... e... mais ninguém...
Sirvo... Delicio... o querer o que já se tem...
Ser Teu... Só Teu... e de mais ninguém...

Estendo os braços... as lágrimas vêem...
Só Teu... Só Teu... e de mais ninguém...

Canto... A chuva cai... A noite turva...
Sigo Amando... a Ti... e é tanto bem...
Minha vida endireita... reencurva...
Só Teu... Só Teu... e de mais ninguém...

Calo... Olho a chuva... A noite avança...
Sigo amando... a Ti... Sou teu refém...
Minha corrente... Tua lança... Minha dança...
Só teu... Só Teu... e de mais ninguém...

Choro... em Ti... minha calma... e chama...
Sigo Amando... a Ti... A vida vem...
Tua presa... Minha igreja... Minha cama...
Só Teu... Só Teu... e de mais ninguém...

Repouso... Fecho os olhos... Sorrio... Feliz...
Ser... enfim... o que eu bem quis...
Ter na vida o melhor que me convém...
Ser Teu... só Teu... e de mais ninguém...

FELIPA CHEGA À JANELA, OLHANDO PARA O JESUÍTA, COLOCA OS BRAÇOS, COMO SE ESTIVESSE EMBALANDO UM NENÉM, E CANTA, SEM QUE AQUELE OUÇA:

Eu pintei o Teu Sol no meu Mar
E me vi, meio tonta, a sonhar
Eu fiquei, assim boba, sem ar
Não cansei, os Teus olhos olhar

Ah... Eu pulei... e dancei... e rodei
Eu cantei... Ave leve a voar
Ah... Eu sorri... e brindei... e reinei
Eu vivi ser em Ti só Teu par

Se esta Vida não quiser nos levar
Lá, muito além, deste belo bailar
Vou, com você... resonhar...
...
Outra vez... com você... resonhar...




Canto 4


DOIS HOMENS COM VESTES RELIGIOSAS, UMA MESA AO CENTRO, ALGUNS LIVROS E PAPÉIS SOBRE ELA.
HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR MANIPULANDO PAPÉIS E FOLHEANDO UM GRANDE LIVRO
Ah... Eu, humilde irmão do Santo Ofício, nesta Visitação... Esta Terra pagã... Território de bárbaros... Ídolos... Paganidades de todas as espécies... Fumos embriagantes...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Bispado novo... Ares exóticos...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Brancos deixaram fazer marcas em seu corpo por pintura e... até por corte... (COLOCA AS MÃOS NA FACE, COM ENFADO) Sou Heitor Furtado de Mendonça... Na plenitude dos meus 35 anos de idade, cheguei a Desembargador real e capelão fidalgo d´el Rei. Sou um Homem de foro nobre dentro da mais correta tradição cristã... Passei por dezesseis investigações de “limpeza de sangue”... Almejava o cargo de Primeiro Inquisidor Oficial em alguma das terras do Reino... Não nesta Terra abrasada!

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Portugueses, não bastando aqui só falarem a língua dos gentios, cometem barbarismos. Dançam com os negros da terra em folguedos.

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Um disse renegar Deus, quando brincava com compadres... Outro jurou pelas barbas de Cristo... Outro, com raiva de ter perdido dinheiro, gritou, para todos ouvirem, “dou-me aos diabos, que me levem já” quarenta vezes.

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Este... confessou que, querendo dizer “Jesus em que creio”, disse “que arrenego”... Este outro afirmou ser a chuva o “mijo de Deus”...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR (TOM IRÔNICO)
Teologicamente muito interessante... não é? Este pronunciou “coitado do serviço de Nossa Senhora”... Gravíssimo! Ainda mais que... esta... eu mesmo diria...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Este afirmou que não deve nada, nem a Deus... Este disse considerar uma sua medalha tanto quanto uma hóstia... Este confessou que disse que, ainda que João Evangelista afirmasse, não creria... Este declarou crer nos evangelhos tanto quanto em negros... Este concordou com São Tomé.. Só crer vendo... Este disse ser o diâmetro da terra tal que, mesmo que Jesus desdissesse, não acreditaria.

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Provavelmente mais um influenciado pelos... nossos “irmãos” (E ACENTUA O DESPREZO NA VOZ)... jesuítas... Que devemos fazer?

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Este cristão conversou carnalmente com gentias... e dormiu com um gentia pelo vaso traseiro... Outro dormiu carnalmente com animais...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA – INQUISIDOR (ABRINDO OS BRAÇOS E DANDO COM OS OMBROS) Até em casais cristãos o marido mete o membro desonesto pelo vaso traseiro da esposa... Pérfidos ajuntamentos contra a natura se consumam aqui e acolá... Mesmo entre puros agiu-se dormindo-se carnalmente por trás... É isso que venho cuidar? Quem enfia no ânus do outro? Perda de tempo! Bem... Se a Graça é mercadoria forte demais para essas tontices... também o nosso zelo não deve faltar...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Senhor... Felipa de Souza... que ajuntou o seu vaso natural com os vasos naturais de outras mulheres... Praticou simpatias diversas, utilizadas por outras mulheres para manter maridos... utilizando misturas de palavras da Santa Missa...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Tem alguém por ela?

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Não... A principal confissão que lhe toca veio de Paula Siqueiro... esposa de incorrupto e leal contador da Fazenda d´El Rey...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Esse gesto tresloucado da esposa... Bem... Conversaremos...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Meu senhor... A denunciada Felipa... Chamou-me atenção por um detalhe... Sua reincidência... pois foi já cá veio degredada... Esta que já foi nossa Irmã Ana...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Isso dói, irmão... Uma irmã que persistiu no desvio...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Amiga de Jesuítas...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA
Ah... Amiga dos... “Irmãos”...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Talvez... pratique o Diabolismo... Desvios nefandos...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA – INQUISIDOR – BRINCANDO COM SUA CRUZ, ENCOSTANDO A PONTA NUMA VELA Gosto do estilo francês de impor o respeito à verdadeira religião. De cada dez denunciados nove são executados... Nove! São exemplo para os temerosos de Genebra, que libertam nove de cada dez!

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Aqui... Uma confissão de alguém que soube de quem não lembra bem quem que Felipa e uma amiga dançam nuas em torno de fogueiras às noites de... (CONSULTA SUAS ANOTAÇÕES) Lua Perfeita... Chegou a mencionar não ter visto, mas ter ouvido, de quem também não bem se lembra, que Felipa atirou um relicário no fogo...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Tem filhos essa Felipa?

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Não os têm...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Pena... Deve-se abrir a ostra pela parte mais frágil... Lembro de uma bruxa de Évora... Como são obstinadas essas criaturas... Se o irmão notário tivesse vivido a experiência que vivi... Essa bruxa teve os polegares despedaçados... Foi colocada sentada sobre uma pirâmide de ponta, a cadeira de Judas, e teve suas pudências arregaçadas... A torção dos seus cabelos com um cabo arrancou seu couro cabeludo... As tenazes arrancaram seus mamilos... Depois os seios inteiros! Colocaram-na de ponta cabeça e meteram o serrote entre as pernas... cortaram a carne até os ossos... Acredita que ela, mesmo assim, não confessou? Foi condenada à fogueira em madeira verde, para que queimasse muito lentamente, e assim o foi. E a maldita só gritava e chorava dizendo que nada de mais fazia... Ora... Em primeiro lugar, uma bruxa não precisa fazer algo... O crime é espiritual, não físico... Depois... Ela não ter confessado foi sua mais prova de culpa.. Nenhuma mulher resistiria àquilo se não tivesse pacto com o Demônio... Então.. aquilo não era uma mulher... Era uma casca... um simulacro...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO
Não me deixarei...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Precisamos conhecer essa... Felipa de Souza... Sodomita... dada a sortilégios demoníacos...

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO (COM MALÍCIA)
Irmã Ana... Amiga de Jesuítas...
.


Canto 5

.
JESUÍTA IRRITADO
Conheci Tavira, no Algarve... Bons ares... A irmã Ana... Felipa... foi expulsa do seu convento... por sodomia... Foi forçada a se casar, para livrar sua família... e a do seu marido... também acusado de sodomia... de embaraços....
Já visitei uma prisão da Santa Inquisição... A água estava sempre a, pelo menos, um palmo acima do piso... e cheia de imundícias... O calor era... infernal... Que triste lugar... Os homens à direita... As mulheres no outro lado, pois são todas canhotas mesmo... Perto de cem pessoas urinando e defecando onde estavam... Olhei naqueles olhos... Jamais esquecerei... Os que ainda estavam conscientes... estavam vesgos... Vesgos de medo ou dor! Meu Deus... Não permita...
Que me assumam as dores
Que se matem as flores
Que interrompam as cores
Que murchem os Amores
Que pereçam alturas
Que se fechem escuras
Que se vão as doçuras
Que esqueça o sentir
Que feneça o porvir
Que embote o fugir
Que se impere o mentir
Que minha alma estremeça
Que minha vida pereça
Que minha mente adormeça
Que o existir não me afague
Que minha luz se apague

ADENTRA O INQUISIDOR

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Essa Felipa... É efetivamente cristã?

JESUÍTA ATALHANDO
Tenho-a por piedosa católica, senhor...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Católica? Em desvio... Por certo... Informaram-me que a irmã... tece considerações, elabora e expõe extravagâncias...

JESUÍTA
Nada que já não tenha sido dito por muitos doutos estimulados por Sua Santidade...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Sua Santidade tem pia paciência e permite hipóteses por mero diletantismo matemático... que a deformação quer confundir com a Realidade...

JESUÍTA Todos os lugares são, a um só tempo, centro e periferia... Não é novidade esta discussão...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA - INQUISIDOR
Nem é novidade que seus maiores defensores se encontram atualmente sob a custódia da Santa Sé... e seus livros são ótimo combustível para fogueiras...

JESUÍTA
Quando Sua Santidade decidir, serei o primeiro a atirar os meus livros às chamas...

HEITOR FURTADO DE MENDONÇA – INQUISIDOR – ARREGALANDO OS OLHOS
Algumas ilusões e erros ainda vigoram entre os que não parecem ter sido talhados para a Fé... Custa lembrar ao irmão as penas selecionadas por Deus para a prática de heresias como a da abominável conjunção carnal... de vasos entre mulheres?
Admoestação Privada ou Pública, Recolhimento... Uso de marcas de herege... Sambenito... Sinetas... Letreiros... Coisas que avisem aos bons crentes que estamos diante de um herege... Uma herege sodomita não poder usar o branco e o azul... Deve usar o roxo... A Flagelação é uma necessidade imperiosa, para que a memória permaneça mais viva... Casos de sodomitas renitentes mais graves... Desapropriação... Galés... Excomunhão... Queima em efígie ou... a mais dolorosa para nós, do próprio corpo...
Porém... Sou tão avesso a práticas mais duras quanto a novidades... Mas, quando necessárias... A Determinação Régia de... 1499... afirmou que mulher que houver com mulher deve ter as mesmas penas de... varão que cometa com outro varão... Ainda que não fôssemos irmãos em Cristo, agindo em nossas obrigações em Seu nome e da Santa Igreja... estaríamos diante da Determinação d’El Rei... Bem... Que venha Felipa de Souza...
.


Canto 6


MERCEDES SENTADA SOZINHA, OLHANDO FELIPA APRISIONADA
E veio um vento...
que assenta dentro...
E veio um dia...
Que ao olhar ardia...

E veio o Amor...
Da suave pena...
Serena sorte...
Da Doce cena...
Ao profundo corte...

Amor...
Que mata a Vida
Que Vida a Morte

Amor...
Tornando fraco...
Forjando forte...

Amor...
Do não saber o quanto...
Do não saber o tanto...
Do não saber porquê...
Do só saber... Você...

ACENDE-SE UMA LUZ, MOSTRANDO FELIPA ACORRENTADA CARECA
Arrasto-me... Que mais?
Augúrio em vida... Contestar já não posso?
Esta luz, este raiar, mais nada?
Minha memória se vai?
Os meus se vão?
Tudo sete palmos no chão?

Fica a certeza ferida...
Meu momento, minha vida
Minha paixão, minha querida...
Vivi, amei, doeu...

Sou feliz... Que mais?
Se estive, fui, senti, cri...
Doeu, amei, fali, cresci...
Todo o resto... fica atrás...

MERCEDES, OLHANDO ATRAVÉS DAS GRADES
Te Olho... Te Vejo
Futuro... Desejo
Me Olha... Te Vejo
Prá que... Tanto Pejo?

Me Olha... Te Vejo
Vem cá... Meu Amor
Te Olho... Prevejo
Do meu prazer... tanta dor

Vem cá... minha Vida
Aí... tá tão escuro...
Vem cá... minha lida...
Contorna esse muro...
Vem cá... minha ferida...
Meu sonho e futuro...

Vem cá... Vem...
E me abraça e me enlaça
E me aperta e liberta...
Vem cá... Vem...
E me condena... à minha pena...
A só viver o Teu ser...
E me consome com gosto...
A mergulhar no prazer...
E me acena... E me ensina...
Só saber o Teu rosto...
E beber... em taça tão fina...
Por só sentir o Teu “Sim”
Buscando Tua rima...
Vivendo prá mim...
E deliciar minha sina...
Te servir... até o fim...”

FELIPA OLHA E VÊ MERCEDES. ESTENDE UMA MÃO, COMO QUERENDO TOCÁ-LA
Ah... Minha Criança... Minha Infância...
Vai Lua, chama emprestada a se por...
Primitiva... tortuosa... e brotou assim
Entranha, fulgor, chuva, vaga cavalgada
Dolorosa... mas... o melhor de mim...

Vivendo razão... Morte... Esquecimento
Das cinzas... frio de cor estranha
Brota aqui... Coração... Lamento
Saudade nua... Força tamanha

Ouço nadas sem fulgor,
Fantasmas... Percebam o fugidio!
Promessas à toa e dor
Passo eu ... um viés tão erradio

Sorriam tristes por passar!
Irmãs e irmãos que na Vida topar
O Viver é só uma lenda...
que se apressa em me matar...

O Viver... escura fenda
Mar errante perdido,
Que eu sei, paciente...
Não erra ao me apagar

FELIPA DEITA E PARECE DESMAIAR. EM DEVANEIO, OLHA E VÊ MERCEDES PASSAR PELAS GRADES E CHEGAR ATÉ ELA.

MERCEDES
Felipa... Meu anjo...

FELIPA
Chama-me Anjo?
Anjo... é cada momento, cada sentimento que nos toca...
É este sorriso travesso... este gosto de pipoca...
É cada lágrima que rola... cada sorriso que emana...
É esta gostosura travessa... de mel com banana...
Anjo... é cada ser que faz nossa vida valer o infinito...
É este bem querer afiado... é esta lembrança benfazeja...
É a Eternidade em cada instante vivido...
É esta Luz que me acompanha... esta penumbra em mim...
Anjo... é Tua face a brilhar e rebrilhar... até o fim dos meus dias... a partir do dia em que Te vi... pela primeira vez...
É correr e correr... brincar de pula... de estátua... adorar o que fiz e fez...
É Tua voz serena ou impiedosa... terna ou fria... a me provar que a Vida é a Vida... e que ela tem suas vias e cursos... e que nós a seguimos...
É Tu... a me relembrar que valemos pelo que sentimos...
Anjo... é saber-se ligeiro, ainda que com pés de chumbo...
É saber-se estático... apesar das asas ligeiras...
É seguirmos muito Além... destes momentos fugazes...
Anjo... é este sentimento por Ti que levarei para sempre comigo...
É esta memória serena em mim...
É cada lembrança... de Amor sem fim...
É este Tudo impondo-se ao nada...
Anjo... é... um sorriso... um dedo melado de doce... um gosto de goiabada...

BARULHO DE TROVÕES. ESCURECE UM POUCO. RELÂMPAGOS. BARULHO DE CHUVA.
FELIPA (SORRINDO, ARREGALANDO OS OLHOS, COM AR DE ASSOMBRO BRINCALHÃO):

Uuuuuuuuuuuuu.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.....
Venta Vida... Venta-me...
Venta aqui, Venta
Vem e Venta, Vento
Vem, Venta, Acalenta..
Vem e Venta
Venta o Amor Alenta
Vem... Venta...
Venta... Amor... Adentra...
Vem... Vento... Venta...
Venta à Vida desatenta
Vem Vento, Vento que Venta
Vem e Venta
Venta o sorriso atenta
Venta o querer aumenta
Vem... Vento... Venta...
Venta minha Alma lenta...
Vem... Vento... Vento... Venta...
Venta... minh’alma esquenta...
Vem... Venta... Vento... Venta
Venta e reinventa...
Vem... Vento... Venta
Venta oito ou oitenta...
Vem... Vento... Venta...
Venta... e o Amor...atormenta
Venta? Vento? Tormenta?
Ah... o Amor...
O Amor agüenta...
Uuuuuuuuuuuuu.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.u.....

MERCEDES Há outro jeito de você ser que não poetisa?

NO DEVANEIO DE FELIPA, SURGE O JESUÍTA. FICAM ELE E MERCEDES, CADA UM DE UM LADO DE FELIPA, QUE PERMANECE NO CHÃO.
CÔRO OCULTO:
Mulher que é macaca
Mulher piranha

JESUÍTA
Mulher que é santa

CÔRO OCULTO:
Mulher aranha
Mulher que apanha
Mulher que é anta
Mulher que arranha

MERCEDES
Mulher que me encanta

CÔRO OCULTO:
Mulher que assanha
Mulher que me mata
Mulher tão estranha

JESUÍTA
Mulher que me ata

CÔRO OCULTO:
Mulher numa sanha
Mulher desacata
Mulher que arreganha

MERCEDES
Mulher que eu quis

CÔRO OCULTO:
Mulher que chora

JESUÍTA
Mulher tão feliz
Mulher que adora
Mulher por um triz

CÔRO OCULTO:
Mulher perua
Mulher um presente
Mulher toda nua

MERCEDES
Mulher que me sente
Mulher tão na Tua

JESUÍTA
Mulher que me escapa

CÔRO OCULTO:
Mulher que é puta

MERCEDES
Mulher que sorri
Mulher tá na luta

CÔRO OCULTO:
Mulher maldita

JESUÍTA
Mulher que reluta
Mulher toda o fundo

CÔRO OCULTO:
Mulher que degluta
Mulher... num segundo

MERCEDES
Mulher... doce fruta...

FELIPA CANTA:
“Vem...
meu coração... de cristal...
E me Ama... tão leve assim...
Um coração... de cristal...
Vem... e chama...
tão breve em mim
Um coração.. de cristal...
Uma vela... meu porto... enfim...

Ah...
Vento... espuma... sem final...
“Sê por mim!”
Ah... meu coração...
Ah.. meu sem fim...
“Sua.... enfim!”

Vem cá me fazer...
Ser assim...
Vem cá me dizer
Sê em mim...

Ah... meu coração....
Um Cristal
Ah... minha canção
Anjo bom...
“Seu, enfim!”

Ah...
meu coração... de cristal...
E me Ama... tão leve assim...
Um coração... de cristal...
Vem... e clama...
tão breve em mim

Ah...
Vento... espuma... sem final...
Sê por mim!
Ah... meu coração...
Ah.. meu sem fim...
“Sua... enfim!”

Vem cá me fazer
Ser assim...
Vem cá me dizer
Sê em mim...

Ah... meu coração....
Um Cristal
Ah... minha canção
Anjo bom...
“Seu, enfim!”

Vem...
meu coração... de cristal...
E me Ama... tão leve assim...
Um coração... de cristal...
Vem... e... Vida...
tão breve em mim...”

MERCEDES E JESUÍTA AFASTAM-SE E DESAPERECEM
FELIPA, OLHANDO PARA O LUAR QUE PENETRA PELA JANELA...

Lua mansa...
CÔRO OCULTO:
Lúcifer!
FELIPA ELEVANDO A CABEÇA
Um Anjo eu sou?
Sou o Início,
Sou o Mar...

Anjo perdido...e... preso...
Rejeitado... e Sozinho...
Vocês? Espectros... e... gelo...
Eu? Fuga... e caminho

Anjo sou... repito
Meu delito? Paixão...
Vocês... acredito...
Frieza... e Razão...

Lágrimas ardentes
Piegas mas quentes,
Eu? Só... Anjo Sozinho!...
Eu? Anjo tão sozinho...

Nada o vento traz
Rejeição ou carinho,
Eu... tranqüilo, tenaz
Infindo o meu caminho

Não... Arrede perdão!...
Não vede meu temor!...
Deixe-me... Anjo Sozinho!...
Em meio à minha dor...

Em meu peito, a tempestade
Em meu eu... não importa...
E eu aqui... Anjo Sozinho
Começando a sonhar...

Sonhar diferente de tudo
Sem angústia... sua razão,
Por estar aqui... sozinho
Esquecer em profusão

Ria! Ria agora Punição

CÔRO OCULTO:
Seu crime? Foi a Paixão!
Ah... Ainda não escutas?

FELIPA:
Canalhas! Corjas dos Céus!
Fora daqui entes velados!
Eu e minhas correntes?
Paixão! Seres gelados!

Pago... Venceram!
Mas, no final, venço eu!
Venço sempre... ouviram?!
Amei e amo! Eu sou eu!!!...

Não distância... frieza...
Racional... tristeza...

Venço eu!!! Improviso... Tesão!!!
Venço eu!!! Impreciso... Tensão!!!
Venço eu!!! Anjo Louco... Paixão!!!
Venço eu!!! Meu Amor... Minha Canção!!!

MANOEL FRANCISCO – NOTÁRIO, ADENTRA
Amordacem-na!

Canto 7


MERCEDES
Que cheiro gostoso de canela...
Uma gota de essência de canela... É você... Felipa...

VOZ DE FELIPA
Passado...
MERCEDES:
Saudade chicote

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Do amargo pote

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Da luz fugidia

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
E foi outro dia

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Só olho o maldito?

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
E eu não acredito

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Recito... recito... recito...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Maldito... maldito... maldito...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Tua lâmina forte...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Tão preciso corte

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Minha vida... minha sorte

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Eu vejo Teu rosto...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
No Amor o desgosto

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Do carinho o oposto

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Estendo minhas mãos

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Joelhos no chão

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Minh´alma ferida

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Insiste a visão

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Você... minha vida...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
E eu... solidão...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Você... minha querida

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Tateio no escuro

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Minha rota perdida...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
De cara prum muro

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
A vida amplidão...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Você... coração...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Você... minha Amada...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Meu sonho prisão...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Meu Amor... um repente?

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Minha Amor... minha visão...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
E Ela... pressente...

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
Minha vida A sente

VOZ DE FELIPA
Passado...

MERCEDES
E a lágrima quente... quente...

SILÊNCIO

MERCEDES
Que rola... ao chão...

ESCURECE.
.


Canto 8


LUZ SOBRE O JESUÍTA


JESUÍTA. ENQUANTO FALA, APARECE A FIGURA DE FELIPA DESFILANDO, CONFORME SUA DESCRIÇÃO:
Doce mulher... Felipa de Souza... Foi declarada uma herética... de alma dada a práticas diabólicas... criatura em erro... atormentada por abominações. Vestiu o roupão de linho cru com pinturas de seus demônios, cheia de pesados guizos pendurados em seu corpo... Também uma tabuleta: “SODOMITA”...
Desfilou pelas ruas desta Cidade do Salvador sob rezas... e ofensas... A cabeça constrangida pela pesada máscara obrigava-a a só olhar o chão... A mordaça vil de couro cru lhe calava... Ouviu sua sentença na Igreja da Sé... com uma grossa vela a derreter por sobre a pele... Foi flagelada... trancada em uma solitária, teve pão e água por quinze sextas e nove sábados... Nunca teve seus dejetos recolhidos... Pagou as custas do processo... Acorrentada, imunda, foi levada até uma pequena nau... Dou graças porque foi somente desterrada. Que tenha sido somente isso... porque o que aconteceu, finalmente, com Felipa, após aquela madrugada, ninguém soube... Minha querida Felipa... Minha amada Felipa...


MERCEDES ADENTRA E OLHA PARA A LUA
Ah.. Se todos estes portos...
Se... todos estes tortos...
Se... todos estes corpos...
Se... todos estes mortos...
Pudessem falar...
Fugiriam as estrelas... secaria este mar... Escaparia... toda esta Vida... todo este ar...
Ah... Minha menina...
Essas crianças tão cedo idas...
Agora... Olhares ocos... escuros... foscos...
Tremores roucos...
Ah... Todos tortos...
Todos tontos...
Tantos prantos...
Tantos cantos...
Tantos contos...
E nenhum vagar...


VULTO DE FELIPA:
Quem sabe...
a Vida seja não sonhar...
Estes Mortos de Mim
Realizando... só assim
A mais perfeita oração
Neste Silêncio que se espraia
A Sete palmos sob o chão...
Vejo-os... mudos como a Lua
Deste peito tão sem rimas
Estes Pés que vão sem rua
Uma viola tão sem cordas
Nestes rumos que não mesclas
Os meus sonhos que não bordas
Nestas pregas às vias tortas
Ser uma estrela por inteiro
Neste clamar sem ver as portas...
Nesta vida que desbotas
Neste ser um fim... sendo só meio...
De dizer... que Te Amo...
Te Amo...


FELIPA CANTAROLA DE CÁSSIA ELLER:
“Quem sabe... eu ainda sou uma garotinha...”


Fim
.
.

.
.
"Immortelle"
Lara Fabian
(tradução)

"Se, perdida no Céu,
Me restasse apenas uma asa
Esta asa seria Você

Se, soterrada em minhas ruínas,
Com apenas um filete de luz
Este filete seria Você

Se, esquecida pelos Deuses,
Eu corresse por uma ilha
Esta ilha seria Você

E se, mesmo inútil,
Restasse um limite frágil...
Eu o atravessaria...

Imortal... Imortal...
Eu sinto ser aquela
Que sobreviverá a todo este mal
Eu morro por Sua causa

Imortal... Imortal...
Eu me desprendi no fim do Céu
Ele não abrigava mais a Eternidade
Eu morro por Sua causa...

Se as palavras são marcas
Eu marcarei minha pele
com aquelas que não são ditas

E porque nada Lhe apaga,
Eu guardarei este mal
Se é apenas ele que resta...

Estará tudo bem ao dizer pra mim
que nada valeu a pena...
Todo este "nada" é meu!

Para que pode me servir
encontrar o destino
se ele não me leva à Você?

Imortal... Imortal...
Eu sinto ser aquela
que sobreviverá à todo este mal
Eu morro por Sua causa

Imortal, imortal
Eu me desprendi no fim do Céu
Ele não abrigava mais a Eternidade
Eu morro por Sua causa

Eu morro por Sua causa...

Imortal... Imortal....
Imortal..."
.
.
.
"Immortelle"
Lara Fabian
.
"Si perdue dans le ciel
Ne me restait qu'une aile
Tu serais celle-là

Si traînant dans mes ruines
Ne brillait rien qu'un fil
Tu serais celui-là

Si oubliée des dieux
J'échouais vers une île
Tu serais celle-là

Si même l'inutile
Restait le seuil fragile
Je franchirais le pas

Immortelle, immortelle
J'ai le sentiment d'être celle
Qui survivra à tout ce mal
Je meurs de Toi

Immortelle! Immortelle!
J'ai décroché un bout de Ciel
Il n'abritait plus l'Eternel
Je meurs de Toi

Si les mots sont des traces
Je marquerai ma peau
De ce qu'on ne dit pas
Pour que rien ne T'efface
Je garderai le mal

S'il ne reste que ça
On aura beau me dire
Que rien ne valait rien
Tout ce rien est à moi
A quoi peut me servir
De trouver le destin
S'il ne mène pas à Toi?

Immortelle! Immortelle!
J'ai le sentiment d'être celle
Qui survivra à tout ce mal
Je meurs de Toi
Immortelle! Immortelle!
J'ai déchiré un bout de ciel
Il n'abritait plus l'Eternel
Je meurs de Toi
Je meurs de Toi...

Immortelle! Immortelle
J'ai le sentiment d'être celle
Qui survivra à tout ce mal
Je meurs de Toi
Immortelle! Immortelle!
J'ai décroché un bout de ciel
Il n'abritait plus l'Eternel
Je meurs de Toi..."
.